Estive 2 meses num serviço de Cirurgia. Surpreendeu-me a cirurgia. Gostei. Um misto de enfermaria, consulta e bloco. A enfermaria. Internamentos curtos, na sua maioria. Mortes mais escassas. Os doentes. Pouco contacto, salvo raras excepções. Tudo mais fugaz. Não há grandes tempos de conversa. Passam os dias ali a olhar para outros doentes ou paredes. Alguns ainda passeiam pela enfermaria. Poucos. Médicos. Aparecem alguns. Muito poucos. Sempre os mesmos. Onde é que eles se metem?
Quase 2 meses de Medicina Interna. Uma enfermaria quase que entregue a alunos. Aprendemos muito, não sentimos o peso da responsabilidade, mas do bom senso. Internamentos longos e longos. Mortes diárias. Negligência profissional, familiar, do sistema. Afeições a doentes. Doentes muitos velhinhos. Já não sei o que é ser velho! Doentes infectados com não infectados. Doentes que não reagem, não falam, não comunicam. Muitos. Autênticas unidades de cuidados continuados. As mesmas paredes para onde olham. Espaços para conversas, para ouvir. Alguns de nós, só. Médicos. Passam por lá. Só os internos ficam.
Há umas semanas atrás uma doente, religiosa, da Ilha das Flores, agradecia-me antes de se ir embora e perguntava se podia ligar à Dra. J. se fosse preciso algo. Na semana passada, uma outra doente, de trança cinzenta, pedia-me que fosse vê-la a casa, "a pagar", dizia ela. Respondi a ambas que não sou médica ainda, que não sei muito, que não posso assumir essas competências.
Há dias em que não apetece, mas são poucos. Depois do banho apetece quase sempre. Há dias em que mal se fala com os doentes, também são poucos. Tenho falado, ainda que poucos minutos por dia, com cada doente minha (até agora só trabalhei em mulheres). Tenho ouvido também.
E elas já me chamam Senhora Doutora, porque para elas, a ponte da comunicação com o centro das decisões, é quem cuida delas, quem as "trata". Não sei se serei uma boa médica. Vou trabalhar muito para isso. Mas queria só, e pelo menos, manter a capacidade de ouvir, de estar, de falar, de ser atenta, de fazer sentir aos doentes que são importantes e de que alguém se preocupa com eles. Se mantiver esta capacidade não estará tudo perdido.
Estes mimos dão-nos vontade de trabalhar e aprender mais. Porque sinto sempre que nada sei. E que quando digo às minhas doentes que não sou ainda médica elas ficam confusas. Como podem elas perceber?
E como podem os médicos ser médicos sem ver doentes? Sem falar com doentes?
Uma admiração sincera aos enfermeiros, ao seu trabalho.
Às vezes penso que da formação de médicos deveria constar uma semana de internamento e uma semana de trabalho de enfermagem.
É, também uma aprendizagem para a vida. Se não nos esquecermos. Vermos doentes pouco mais velhas que nós, mães de filhos pequenos, a serem "contaminada pela epidemia do século", o cancro. Dão-me vontade de viver. De ser mais quem sou, de perder a compostura (como tu, H., tão bem dizias), de largar o comando do controlo. Mas afinal de contas, adormeço e acordo, quase sempre como no dia anterior e a viver um dia de cada vez. Numa ou outra enfermaria.
Um dia, talvez tenha coragem para ser 'louca'!
2 comentários:
Oba..
enfermeiro nao é especial!!
médicos tambem nao
da minha (curta) experiencia por estas andanças o que importa são os valores de cada um... e se se quer ou nao aplicar esses valores à vida proissional.
Há medico negligentes, despreocupados, laxistas...mas tb ha enfermeiros, auxiliares, administrativos, tecnicos de laboratório...
Parte de cada um ser o tal rebelde e ir contra o conformismo e laxismo instalado que se vive na saude hoje em dia. Creio que estamos a mudar de paradigma...mas depende de mim.. e de ti.. e da formaç que dermos pa incluir novos valores num Sistema de saude sem identidade(s),sem respeito pela pessoa.
Acho que estamos a mudar...que dá para mudar!
Parafraseando "yes, we can!" (obama):P
Bom Natal
Sr. Enfermeiro (para mim especial!),
Gostava de ver muitos médicos a fazer algum do trabalho de enfermeiro... aquele de lavar doentes, mudar doentes, cuidar,tu sabes... mesmo que com má vontade, mesmo sem sorriso nos lábios, mesmo com laxismo...
É mais a isso que me refiro. Ao trabalho que prezo e admiro. "Metem muito a mão na massa". Não é para todos e tem o seu valor.
Quanto ao resto... Ipsis Verbis!:)
Beijinho*
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