sábado, dezembro 27, 2008

deliciante...


"A essência da vida são os outros. A nossa época é-lhe contrária por várias estupidezes. As pessoas vangloriam-se de ser independentes, individualistas, auto-suficientes, egocêntricas, únicas, solitárias, livres. Dizem: “Quero lá saber o que os outros pensam!" Sem perceber a terrível vaidade que isso implica. Para ter uma noção do pouco que valemos, basta subtrair ao que somos o que aprendemos, o que lemos, o que vivemos com os outros. É só ver o que fica. Coisa pouca. Sozinho quase ninguém é quase nada. É somente juntos que podemos ser alguma coisa. A verdade é que devemos tudo a quem já deu, já morreu, já disse, já escreveu. E a nossa felicidade devêmo-la, não a nós próprios, mas a quem vive ou viveu ao pé de nós. Será isso o que custa tanto a aceitar? Nascemos dentro de um mundo cheio de hábitos, de conhecimentos e de poesia. Com a papa feita. Tudo existe sem o nosso esforço. Tudo já lá está antes da ideia que temos, da iniciativa que tomamos. Temos literaturas, Histórias, línguas, regras sociais, tecnológicas. Uma bela herança, feita das coisas que os outros nos deixaram. Não foi por serem generosos – foi por viverem connosco. Os outros são a nossa vingança, a nossa moralidade, a nossa inibição. No pouco tempo em que vivemos e trabalhamos, limitamo-nos a acrescentar um ponto ou outro à soma que já existe. Um dia morremos. A morte é o preço que se paga pelo facto de vivermos tão facilmente. Pelo facto de não termos que inventar a língua que se fala, de não escrevermos os livros que se lêem, de não fazermos o pão que se come, de não sermos obrigados a estabelecer e a negociar as regras com que se vive. Os outros são a sorte que nos cabe, são o azar que nos calha. São o nosso último recurso e a nossa primeira obrigação. Esta é a essência da sociedade. Enriquecemos quando os outros são ricos, empobrecemos quando eles são pobres. Deixemo-nos de betices. O sentimento mais importante de todos é a solidariedade. (…) Posso dizer uma verdade? A minha maior qualidade é o meu Amor, é a minha família, são os meus amigos, é a minha pátria, são os meus colegas. São os meus antepassados, são os exemplos que me deram, são os meus livros. Eis a essência da minha vida, de qualquer vida: a minha maior qualidade são os outros. É esta a maior qualidade de qualquer outra pessoa. A minha maior qualidade é depender dos outros, é preocupar-me com o que pensam, é ser influenciado pelo que dizem. Eu não sou quase ninguém. Eu sou só um. Os outros são quase tudo. São quase todos. A minha maior qualidade é não querer, saber que não posso safar-me sozinho. É sentir-me sozinho quando estou sozinho, preso pelo amor que me prende. É sentir-me incompleto. Os outros dão-me vida. A minha maior preocupação é conhecê-los, servi-los, conservá-los, merecê-los. A essência da vida está fora de nós. Está nos outros todos juntos, sem lugar, sem tempo, sem saber como. A única coisa que temos é o Amor."


Miguel Esteves Cardoso. In “ O independente “, caderno 3, de 10/ 8/ 1990



para 2009...


terça-feira, dezembro 23, 2008

já não sei o que é ser velho...



Estive 2 meses num serviço de Cirurgia. Surpreendeu-me a cirurgia. Gostei. Um misto de enfermaria, consulta e bloco. A enfermaria. Internamentos curtos, na sua maioria. Mortes mais escassas. Os doentes. Pouco contacto, salvo raras excepções. Tudo mais fugaz. Não há grandes tempos de conversa. Passam os dias ali a olhar para outros doentes ou paredes. Alguns ainda passeiam pela enfermaria. Poucos. Médicos. Aparecem alguns. Muito poucos. Sempre os mesmos. Onde é que eles se metem?


Quase 2 meses de
Medicina Interna. Uma enfermaria quase que entregue a alunos. Aprendemos muito, não sentimos o peso da responsabilidade, mas do bom senso. Internamentos longos e longos. Mortes diárias. Negligência profissional, familiar, do sistema. Afeições a doentes. Doentes muitos velhinhos. Já não sei o que é ser velho! Doentes infectados com não infectados. Doentes que não reagem, não falam, não comunicam. Muitos. Autênticas unidades de cuidados continuados. As mesmas paredes para onde olham. Espaços para conversas, para ouvir. Alguns de nós, só. Médicos. Passam por lá. Só os internos ficam.

Há umas semanas atrás uma doente, religiosa, da Ilha das Flores, agradecia-me antes de se ir embora e perguntava se podia ligar à Dra. J. se fosse preciso algo. Na semana passada, uma outra doente, de trança cinzenta, pedia-me que fosse vê-la a casa, "a pagar", dizi
a ela. Respondi a ambas que não sou médica ainda, que não sei muito, que não posso assumir essas competências.

Há dias em que não apetece, mas são poucos. Depois do banho apetece quase sempre. Há dias em que mal se fala com os doentes, também são poucos.
Tenho falado, ainda que poucos minutos por dia, com cada doente minha (até agora só trabalhei em mulheres). Tenho ouvido também.

E elas já me chamam Senhora Doutora, porque para elas, a ponte da comunicação com o centro das decisões, é quem cu
ida delas, quem as "trata". Não sei se serei uma boa médica. Vou trabalhar muito para isso. Mas queria só, e pelo menos, manter a capacidade de ouvir, de estar, de falar, de ser atenta, de fazer sentir aos doentes que são importantes e de que alguém se preocupa com eles. Se mantiver esta capacidade não estará tudo perdido.

Estes mimos dão-nos vontade de trabalhar e aprender mais. Porque sinto sempre que nada sei. E que qu
ando digo às minhas doentes que não sou ainda médica elas ficam confusas. Como podem elas perceber?

E como podem os médicos ser médicos sem ver doentes? Sem falar com doentes?

Uma admiração sincera aos enfermeiros, ao seu trabalho.
Às vezes penso que da formação de médicos deveria constar uma semana de internamento e uma semana de trabalho de enfermagem.

É, também uma aprendizagem para a vida. Se não nos esquecermos. Vermos doentes pouco mais velhas que nós, mães de filhos pequenos, a serem "contaminada pela epidemia do século", o cancro. Dão-me vontade de viver. De ser mais quem sou, de perder a compostura (como tu, H., tão bem dizias), de largar o comando do controlo. Mas afinal de contas, adormeço e acordo, quase sempre como no dia anterior e a viver um dia de cada vez. Numa ou outra enfermaria.

Um dia, talvez tenha coragem para ser 'louca'!


terça-feira, dezembro 16, 2008

dicas...














Lokua Kanza

A T. mostrou-me.
Ainda bem que estava perdido no computador.
Quem quiser explorar...

segunda-feira, dezembro 15, 2008

sintonias...

"Continuamos a olhar para a Igreja, a comunidade dos discípulos de Jesus, responsáveis por continuar a sua missão, de que fazemos parte.
Como é que se constitui esta comunidade? Segundo o desejo de Jesus, deve viver unida, numa união que vem da ligação de cada membro ao próprio Jesus.

Mas há também nela grande diversidade. Diversidade que é, afinal, a base da sua riqueza.
Unidade
na relação à fonte; diversidade enriquecedora no testemunho e no serviço
Mas para que o testemunho da Igreja se aproxime da plenitude do dom que guarda, tem que se expressar em diversidade. Assim, com a contribuição de cada um, o bem comum enriquece-se visivelmente.
A diversidade não é deficiência, é mais abundância."
CVX-U; Ano 3; TPC 04



Isto foi sempre a minha visão de comunidade e ainda é. Isto foi o que senti sempre nas duas maiores comunidades de que fiz parte. Isto, que considero ter sido vivido e sentido, uma "união com a fonte", foi a origem de laços que não vejo com facilidade em relações estabelecidas noutro tipo de comunidades.





"Ora, há diversidade de dons, mas o Espírito é o mesmo. E há diversidade de ministérios, mas o Senhor é o mesmo. E há diversidade de operaçöes, mas é o mesmo Deus que opera tudo em todos. Mas a manifestaçäo do Espírito é dada a cada um, para o que for útil. Porque a um pelo Espírito é dada a palavra da sabedoria; e a outro, pelo mesmo Espírito, a palavra da ciência; E a outro, pelo mesmo Espírito, a fé; e a outro, pelo mesmo Espírito, os dons de curar; E a outro a operaçäo de maravilhas; e a outro a profecia; e a outro o dom de discernir os espíritos; e a outro a variedade de línguas; e a outro a interpretaçäo das línguas. Mas um só e o mesmo Espírito opera todas estas coisas, repartindo particularmente a cada um como quer.
Porque, assim como o corpo é um, e tem muitos membros, e todos os membros, sendo muitos, säo um só corpo, assim é Cristo também. Pois todos nós fomos batizados em um Espírito, formando um corpo, quer judeus, quer gregos, quer servos, quer livres, e todos temos bebido de um Espírito. Porque também o corpo näo é um só membro, mas muitos.
Ora, vós sois o corpo de Cristo, e seus membros em particular. E a uns pós Deus na igreja, primeiramente apóstolos, em segundo lugar profetas, em terceiro doutores, depois milagres, depois dons de curar, socorros, governos, variedades de línguas. Porventura säo todos apóstolos? säo todos profetas? säo todos doutores? säo todos operadores de milagres? Têm todos o dom de curar? falam todos diversas línguas? interpretam todos? Portanto, procurai com zelo os melhores dons; e eu vos mostrarei um caminho mais excelente". Cor12,4-14,27.



sábado, dezembro 13, 2008

inquietações....


África. Desta vez foi diferente. A Guiné é diferente. Na Guiné nada me parece funcionar. O Dr. Fernando Nobre falou de emigração, da esperança que é preciso dar aos jovens dos países africanos, que já perderam a esperança nas suas terras, nos seus governos, no seu futuro. Eu não perguntei e devia ter perguntado, exactamente aquilo que me inquietou, que me inquieta, o nó na garganta, o soco no estômago. E como? Há estratégias? Alguém inventou? Alguém já concretizou? Pensar já pensámos muitos, continuamos a pensar. E como? E como se devolve a esperança? E como se faz com que comece a funcionar? E como é que eu não volto só para "tapar buracos", combater necessidades, não tirando nenhum mérito ao que se faz, pelo contrário, a salvação dos povos... Como, como é que se reverte a situação? Utopia? Não chego lá, nem à resposta simples... sempre pequena, pobre e cheia de limitações. Sempre a ânsia de ir, de partir e de fazer... o quê ao certo, é que não sei.
Preciso de luzes de quem sabe apenas um pouco mais do que eu!